terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da Baixa. Do rio. Do sol. Da sua transparência. Das ruas. Dos candeeiros. Dos jardins. Do café e do pastel de nata. Do metro. Do Marquês. Do Largo dos Patos. Da senhora da mercearia. Da minha língua. Do Terreiro do Paço. De me perder, cliché, em Alfama. Dos gatos. Do eléctrico 28. Do rio. Das gentes. Do Rossio de manhã cedo. De Sintra. Da Aviva. Do Miguel. Da Carolina. Da Maria e do José. Do Cristo. Da Ponte. Da música. Do jardim francês. Do bagaço. De subir e descer. Do pitoresco. Das aberrações. 'Café duplo'. Da sé. Dos miradouros. Dos Anjos. De Entrecampos. Do Martinho da Arcada. Da Casa dos Bicos. Das fachadas. Do cheiro. Das livrarias.

Sinto saudade, esse sentimento permeável à memória. De ti, oh Lisboa.

sábado, 13 de novembro de 2010

Serradura

"A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar «Viva a Alemanha»…
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné."


Mário de Sá-Carneiro