sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Trabalho é de cão. Olho em volta a minha sala. Tem as paredes laranja por causa da humidade e uma janela de prisão. A mesa branca resguarda flores que teimam em crescer sem eu saber como. Vejo as escadas da galeria e quase adormeço. Fumo por desgraça do hábito e não por gosto ou vontade. Bem que o meu magro rendimento se queixa. Ainda se trabalhar fosse por gosto. Lá no escritório a luz entra pelas paredes de janelas e o fumo das grandes chaminés dá cor branca ao ar, misturado ao sol, um quê de primaveril. Lá fora estão -5º. Um dia disse à mãe que queria ser artista, o que me calhou na rifa foi fazer da vida o melhor que pudesse e hoje tudo é um grande drama teatral. Não digo isto com tristeza, digo isto com verdade. Dizem muitos que isto é preguiça. Eu diria que é a juventude e tudo isto é insuficiente. Ainda se trabalhar fosse por gosto. Admirei-me hoje nos correios daqui, a funcionária robot não hesitou em qualquer acção, sorrindo, 1, 2, 3, obrigada, que a fila ainda é grande.
Pudesse eu fazer dos livros todos que li algo de útil e já tinha conquistado meio mundo. Ainda se trabalhar fosse por gosto. E não esta coisa de 9 às 18h. Acordar, sentir o ânimo alheio morrer a cada dia da semana que passa em carruagens de eléctrico.
Por isso, chegou o dia em que tomei a grande acção. Enchi-me de valentia, entrei no escritório e disse: venho hoje aqui para me despedir. E a secretária incrédula exclamou: "ah!! mas porquê??"
Não lhe quis responder. Pedi-lhe o papel que tinha para assinar. Trabalhei dois meses a contra gosto para cumprir contracto e não levar com acções legais.
Chegou o dia.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da Baixa. Do rio. Do sol. Da sua transparência. Das ruas. Dos candeeiros. Dos jardins. Do café e do pastel de nata. Do metro. Do Marquês. Do Largo dos Patos. Da senhora da mercearia. Da minha língua. Do Terreiro do Paço. De me perder, cliché, em Alfama. Dos gatos. Do eléctrico 28. Do rio. Das gentes. Do Rossio de manhã cedo. De Sintra. Da Aviva. Do Miguel. Da Carolina. Da Maria e do José. Do Cristo. Da Ponte. Da música. Do jardim francês. Do bagaço. De subir e descer. Do pitoresco. Das aberrações. 'Café duplo'. Da sé. Dos miradouros. Dos Anjos. De Entrecampos. Do Martinho da Arcada. Da Casa dos Bicos. Das fachadas. Do cheiro. Das livrarias.

Sinto saudade, esse sentimento permeável à memória. De ti, oh Lisboa.

sábado, 13 de novembro de 2010

Serradura

"A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar «Viva a Alemanha»…
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné."


Mário de Sá-Carneiro